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Jocelino e sua mata

agosto 30, 2011 -

Ele elegeu a natureza como companheira. Desde 1962, Jocelino José da Silva, 80 anos, o Jocelino da Mata, vive numa chácara encravada no perímetro urbano de Paulo de Faria, cercado por árvores centenárias, que, enquanto estiver vivo, não há quem as coloque abaixo. Filho de carpinteiro, Jocelino herdou o dom do pai. Ergueu com as próprias mãos a casa construída no terreno, de tijolos aparentes, onde vive até hoje. Foram dias e noites de trabalho, “sozinho, com a lua”, como ele mesmo diz. Agora, a casa antiga é cercada por cipós que impedem algumas passagens, os quais, Jocelino confessa, às vezes tem vontade de “meter o facão”.

Passar a tarde sentado à sombra, e lá ficar até anoitecer é um de seus passa-tempos. O som da criação de galinhas é parte da cena. E era assim que ele estava numa tarde quente de agosto – sem camisa, “meditando”.

“Aqui se matava porco, tirava leite de vaca, era uma chacrinha, e está sendo até hoje, e eu nunca estraguei. Eu tenho prazer de ver. Derrubar eu não vou derrubar, eu gosto do mato”, explica. Jocelino é mesmo um homem de alma rústica, que encanta com suas histórias e a forma de contá-las. Histórias como a do galo Zaqueu, que num minuto de bobeira levou para uma rinha e depois, arrependido (mas como o bicho vivo), jurou que “nunca mais iria correr sangue de criação em seu terreiro”. Ou como a do papagaio de estimação, que aos 43 anos já destruiu duas televisões, e sempre vai dormir à meia-noite, e a da cobra coral guardada há três anos embaixo de uma lata de tinta depois de ser tirada da boca de um gato. Ou, ainda, a história de quando era jovem e subia até o cruzeiro da igreja sonhando tocar aviões que cruzassem o céu.

A memória de Jocelino parece tão intacta quanto a velha mata onde mora. A máquina de fazer garapa no meio do quintal apelidada de engenhoca é referência de uma época difícil, que ele descreve com riqueza de detalhes.”Um dia achei uma cana de dois metros, mais alta do que eu. Fazia nove dias que eu não tomava nem água, não tinha nada, estava pobre. Trouxe aqui, e saiu um litro e meio de guaraná. E eu bebi, era uma hora da tarde. Deitei e desmaiei, acordei quase meia noite.”

Embora a aparência seja de desleixo, uma ponta de vaidade aparece quando ele descobre que será fotografado. Jocelino interrompe a conversa, levanta da cadeira e vai até o pequeno espelho pendurado numa árvore. “Não tira ainda não, deixa eu pentear meu cabelo. Se não vão falar que eu ‘tô’ saindo da selva.” Não seria por acaso se assim fosse descrito. Na terra de Jocelino a impressão é de um mundo intocável, onde cada elemento está no mesmo lugar há décadas. “Essa grade é da primeira cadeia de Paulo de Faria. Ficava num banheiro público e jogaram num ferro velho. Comprei por 15 cruzeiros.”

A mata de Jocelino virou até roteiro de visitas de alunos da rede de ensino de Paulo de Faria. Lá, crianças e adolescentes conhecem pés de cacau, guapeva, pinha, tamarindo, angá, abacate, entre outras espécies que ele gosta de compartilhar. Entre as árvores, é possível até descobrir um moinho de café que acabou “engolido” por um tronco com o passar do tempo. A peça era usada pela mãe de Jocelino, Delminda Furtado, que morreu há 24 anos, aos 75.

“Muitos não sabem que aqui não é tranqueira, é um lugar que tudo o que é histórico eu trago pra cá, e deixo espalhado. Porque se amontoar apodrece”, fala, enquanto percorre o quintal como se fosse um guia turístico. Jocelino aponta dois pedaços de madeira, considerados relíquias. Um deles é ipê, “para fazer um cofre por causa de ladrão”. O outro pedaço é aroeira roxa. “Esse pau aqui eu não vendo ele, não existe mais.”

Adoentado há cerca de um ano, Jocelino lamenta não ter mais forças e diz que sente falta do trabalho. Com orgulho, fala da reforma que fez sozinho em 1996 na Casa da Criança – projeto social que atende 200 crianças em horário alternativo ao da escola. “Aquilo lá é minha vida. Amo as crianças.”

Jocelino nunca se casou. Comprou o local onde preserva sua mata para a mãe poder morar com tranquilidade, e confessa que depois de sua morte, ficou desgostoso da vida. “Um mês depois da morte de mamãe fui numa fazenda trabalhar, bati um prego nos olhos, e daí para adiante não prestei mais nada.”

Talvez essa seja a melhor explicação para o fato de Jocelino ter concentrado suas forças na pequena mata, sem deixar que alguém interfira no seu modo peculiar de levar a vida. De vez em quando, ele recebe a visita de uma sobrinha que mora em Rio Preto. “Mas eu sou ruim, eu dano com eles”, diz, em referência aos familiares. A explicação para o amor àquela terra talvez seja mais simples: “Eu gosto daqui.” (Fotos: Hamilton Pavam)